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Do campo ao prato: sorgo busca espaço na alimentação humana no Brasil

Com alto valor nutricional, ausência de glúten e potencial antioxidante, grão quer superar o estigma de uso exclusivo para ração animal

Embrapa e Latina Seeds lançam cultivar de sorgo que supera 6 toneladas por hectare
Foto: Embrapa/Divulgação

Multifacetado e resistente, o sorgo vem ganhando cada vez mais espaço na agricultura brasileira, sobretudo como uma alternativa ao milho na segunda safra e como um bom aliado na rotação de culturas. Conforme apresentado na primeira parte desta reportagem, na última década, o cultivo do grão dobrou no Brasil e deverá alcançar, na atual safra 2024/25, 4,947 milhões de toneladas. 

Quando falamos em sorgo no Brasil, rapidamente o associamos à produção de ração animal e, num recorte mais recente, também à produção de etanol. Todavia, poucas pessoas sabem que o grão pode ser utilizado como uma opção muito nutritiva na alimentação humana

“Isso está estigmatizado na agricultura brasileira, desde a década de 1970, quando iniciou o cultivo no Brasil, que o sorgo só serve para consumo animal”, comenta Valéria Aparecida Vieira Queiroz, pesquisadora da Embrapa Milho e Sorgo, contextualizando que se trata de uma característica dos países ocidentais. “O sorgo é consumido por humanos há mais de 1.000 anos; na África e em algumas nações da Ásia, esse consumo é forte até hoje”, completa. 

Segundo Valéria, a indústria de alimentação humana morde anualmente uma fração pequeníssima da produção brasileira de sorgo, difícil até de ser calculada. No entanto, a pesquisadora comenta que, com pesquisa e principalmente divulgação, esse cenário pode mudar. 

“Eu sempre gosto de comparar com a soja, que, quando entrou no Brasil, era só voltada para a alimentação animal também. E, aos poucos, ela foi entrando na alimentação humana. Hoje em dia, quase todo produto que a gente compra tem soja”, afirma Valéria. “A gente espera que o sorgo, daqui a uns anos, chegue nesse patamar também. Porque tem um potencial nutricional enorme”, completa.

O valor nutricional do sorgo 

Em comparação ao milho, cereal com o qual o sorgo compete por espaço na segunda safra nas lavouras brasileiras, não existem muitas diferenças nutricionais, isto é, ambos os grãos apresentam uma composição semelhante de carboidratos, proteínas e lipídios

No mercado de alimentação humana, o sorgo também se apresenta como uma alternativa ao trigo para a produção de farinha, mas com um diferencial relevante: ele não possui glúten. 

“O milho também não tem glúten, mas deixa um sabor residual em todo produto que você faz com ele. Se você está consumindo um produto à base de milho, você reconhece o gosto e sabe que ele foi feito com milho. Já o sorgo não, ele tem um sabor neutro, bem suave”, afirma Valéria. 

Além da farinha, já é possível encontrar no varejo brasileiro alguns produtos feitos total ou parcialmente com sorgo, como massas, macarrão, bolos, pães, panquecas, entre outros. 

O sorgo é o cereal que possui maior capacidade antioxidante entre os cereais, deixando para trás todas as variedades de arroz, milho, trigo e centeio. De acordo com a pesquisadora da Embrapa, esse potencial antioxidante aumenta nas variedades de sorgo que possuem tanino, um composto que se complexa com a proteína e o amido presente no sorgo, dificultando a absorção por parte de aves e suínos e a quebra dos grãos para a fabricação de etanol.

No entanto, essa substância pode ser boa para a alimentação humana. Por se complexar com os nutrientes, ela reduz a disponibilidade calórica e não deixa de saciar a fome. “Isso é interessante para quem sofre com obesidade, sobrepeso, diabete. Você consome o alimento, ele te dá saciedade, mas, ao mesmo tempo, o amido não é absorvido na forma de glicose”, afirma Valéria, que também possui formação em nutrição. 

Pesquisas da Embrapa

Conforme apresentado na primeira parte da reportagem, a pesquisadora ressalta que, pelo fato do mercado historicamente pagar por peso e não por qualidade, as pesquisas recentes da Embrapa buscam sempre por cultivares mais produtivos e que não necessariamente tenham algum nutriente de destaque. 

“A gente tem identificado genótipos de sorgo com maior teor de proteínas, outros com mais compostos bioativos, como taninos e antocianinas, mas, no mercado, a gente ainda não tem uma cultivar própria para alimentação humana, ou seja, rica nestes compostos”, lamenta. Entretanto, qualquer sorgo pode ser consumido por humanos, desde que seja produzido, armazenado e distribuído de forma segura, sem contaminantes.

A Embrapa Milho e Sorgo desenvolveu e publicou um e-book com 25 receitas sem glúten, elaboradas à base de grãos e farinha integral de sorgo. Outras 25 receitas estão em fase de desenvolvimento e farão parte da segunda edição da publicação. Se você se interessa pelo assunto, pode acessar o livro clicando aqui. 

Diante de todo esse potencial nutricional e funcional, fica o convite — ou até mesmo o desafio — aos produtores brasileiros: que tal olhar com mais carinho para o cultivo de sorgo, não apenas como uma commodity destinada à ração e ao etanol, mas como um ingrediente nobre e versátil para a alimentação humana? 

Assim como a soja transformou seu papel na agricultura e na dieta, o sorgo também pode trilhar esse caminho, ampliando mercados, diversificando a renda no campo e contribuindo para uma alimentação mais saudável e inclusiva.